segunda-feira, 1 de agosto de 2016

AGOSTO

“As folhas de outono ainda não tinham sido apanhadas. O vento gélido perpassava pelos flocos de neblina, augurando uma noite ainda mais fria do que já fora o dia. Alfredo ergueu o olhar para fitar o horizonte, mas tudo o que viu foram nuvens esvoaçantes, um burro plácido a beber pachorrentamente de um bebedouro, e uma vaca mugindo junto ao poço. Bateu à porta uma vez, e depois outra, e ainda outra, mas parecia não haver ninguém em casa. Surpreendo-o, o fecho da porta gemeu e ela se abriu, e para lá dela uma cara que poderia se julgar de um cadáver assomou sem expressão. O tio João fechou a porta atrás de si, e pegou-lhe na casaca para a depositar no cabide junto à janela envidraçada. Tinha um nariz aquilino e um olhar truculento, muito diferente das recordações que Alfredo guardava dele. O seu cabelo desgrenhado pela falta de pente transformara-se numa moita de cabelos brancos, mas outrora fora uma viçosa cabeleira castanha. Avançaram por uma portada dupla para uma sala de estar desarrumada, onde um sofá de veludo coçado era abrigo de livros de lombada desgastada e páginas amarelecidas pelo tempo; onde um grande candeeiro de pé revelava ferrugem, curvada com o peso dos anos; e onde um lustre muito antigo se encontrava apagado. A lareira, da qual Alfredo guardava tão boas recordações das noites de inverno, estava apagada. Uma tenaz jazia sobre a pedra de mármore, e uma cavaca repousava no leito da lareira, sitiada por blocos carbonizados do que teria sido uma fogueira há muito apagada.
– O que lhe aconteceu?! – perguntou Alfredo, receando a resposta.
– O que acontece a todos os velhos. Nada.
Na verdade, isso não correspondia à verdade. Desde que a tia Berta tinha morrido, a casa perdera o brilho, e não apenas de forma metafórica. Tudo naquela casa parecia baço com a falta de limpeza, as paredes estavam sujas de salitre e uma fina membrana de pó pousara como um véu naquela sala outrora luminosa. Um galgo preto, Sonolento, dormia aos pés do sofá, e Alfredo sabia que não era apenas o sono que lhe dera o nome que vergara aquele pobre animal. Também ele sentia a falta de tia Berta. Tanto, como tio João.
– O tio devia vir comigo. – Uma gargalhada cava deu vida ao salão.
– Para onde? ! Para Lisboa?! Não, essa cidade não tem nada que me possa oferecer. Esta terra está deserta, é por causa de mentes como as tuas que isto está como está. Nasci aqui, e há-de ser aqui que me hão-de enterrar.
– Não há nada que eu possa fazer para o convencer?! – A sua voz era ténue, mas o velho estava resoluto.
– Vai-te embora, Alfredo. Não há nada que possas fazer por mim.
– Há sempre alguma coisa que podemos fazer. Não é esta a vida que eu quero para si. Não é esta a vida que o tio quer.
O homem sorriu frouxamente pela ousadia do jovem e passou por si na direção do corredor.
– Se foi para isto que vieste, podes ir pelo mesmo caminho.
– Não vou. O tio pode não vir comigo. Mas… vamos dar uma limpeza a isto. Pode julgar que já está morto, tio, mas não está. E eu vou provar-lhe isso. Venha comigo.
O velho estreitou os olhos e admirou-se com a audácia do sobrinho. Mas algures naqueles olhos verdes e luminosos iguais aos da sua falecida mulher, ele viu um rasgo de esperança.” 

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