Moreira Campos (José Maria), nascido em Senador Pompeu (6 de janeiro de 1914), é filho do português Francisco Gonçalves Campos e Adélia Moreira Campos. Ingressou na Faculdade de Direito do Ceará, bacharelando-se em 1946. Licenciou-se em Letras Neolatinas em 1967, na antiga Faculdade Católica de Filosofia do Ceará. Na área do magistério iniciou-se como professor de Português, Literatura e Geografia em colégios. Exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará, Curso de Letras, como titular de Literatura Portuguesa. Integrante do Grupo Clã. Pertenceu à Academia Cearense de Letras. Faleceu em Fortaleza, no dia 7 de maio de 1994. Deixou as seguintes coleções: Vidas Marginais (1949), Portas Fechadas (1957), distinguido com o Prêmio Artur de Azevedo, do Instituto Nacional do Livro, As Vozes do Morto (1963), O Puxador de Terço (1969), Os Doze Parafusos (1978), A Grande Mosca no Copo de Leite (1985) e Dizem que os Cães Vêem Coisas (1987). Seus Contos Escolhidos tiveram três edições, Contos foram editados em 1978 e Contos – Obra Completa se publicaram, em dois volumes, em 1996, pela Editora Maltese, São Paulo, com organização de Natércia Campos. Tem também um livro de poemas, Momentos (1976). Participou de diversas antologias nacionais. Algumas de suas peças ficcionais foram traduzidas para o inglês, o francês, o italiano, o espanhol, o alemão.
Sua obra está estudada em importantes livros, como o de José Lemos Monteiro, intitulado O Discurso Literário de Moreira Campos, o de Batista de Lima, Moreira Campos: A Escritura da Ordem e da Desordem, e outros mais abrangentes, como Situações da Ficção Brasileira, de Fausto Cunha; 22 Diálogos Sobre o Conto Brasileiro Atual, de Temístocles Linhares; e A Força da Ficção, de Hélio Pólvora. Em jornais e revistas se estamparam quase uma centena de artigos e ensaios sobre os seus livros.
Temístocles Linhares classifica o contista de Portas Fechadas de “um de nossos maiores contistas atuais”. E comenta: “Lê-lo, para mim, é reviver, em certos aspectos, transpostos para o ambiente de seu Ceará, os velhos mestres do naturalismo. Como eles, o autor também desconfia das grandes palavras e dos grandes gestos, preferindo tentar substituir os julgamentos de valor pelos julgamentos de existência”.
Assis Brasil escreveu: “Moreira Campos faz, no Ceará, a ligação entre o conto de história, ainda vigente nos primeiros anos do Modernismo, e o conto de flagrante, sugestivo, que as novas gerações, a partir de 1956, desenvolveriam em muitos aspectos criativos”.
Hélio Pólvora opina: Moreira Campos, “embora não sendo um tchekhoviano perfeito, dele (Tchekhov) se aproxima quando livra o conto de uma sobrecarga excessiva e procura atingir logo o alvo, localizar logo o nervo exposto”. E acrescenta: “Moreira Campos seleciona e filtra fatos que às vezes se resumem a instantes, e nesse processo informa ou sugere o conflito vivido pela personagem, mostrando, afinal, o que ela faz para resolver o conflito ou sucumbir”.
Segundo Herman Lima, no ensaio citado na primeira parte, Moreira Campos: (...) “é um mestre do conto moderno, desde o aparecimento do seu primeiro livro, Vidas Marginais (1949), no qual há pelo menos uma obra-prima do conto universal desta hora, “Lama e Folhas”. Diz mais: “As pequenas ou grandes tragédias, as comédias ocultas do cotidiano burguês, fixadas por ele, ganham, em sua mão experiente, uma especificidade que o aproxima dos maiores nomes do conto psicológico de todos os tempos, de Machado de Assis para cá, inclusive e principalmente Tchecov, de sua íntima e fiel convivência, ou, mais perto de nós, de um Joyce dos Dubliners ou um Sherwood Anderson, de Winesburg Ohio”.
Montenegro argumenta: “Moreira Campos será talvez não apenas o contista de maior projeção nas letras cearenses contemporâneas, porém, ainda, juntamente com Osman Lins, Dalton Trevisan e poucos outros, terá ele realizado o que de mais significativo existe no conto moderno brasileiro”.
Sânzio de Azevedo, principalmente no ensaio “Moreira Campos e a Arte do Conto” (Novos Ensaios de Literatura Cearense) faz algumas observações: “Na linhagem de Machado de Assis e por conseguinte na de Tchecov é que se entronca a obra ficcional de Moreira Campos” (...). Segunda: “apesar de haver optado pela narrativa sintética, extremamente despojada, com que tem enriquecido a nossa literatura através de não poucas obras-primas, não renegou os longos contos de seu primeiro livro” (...). Terceira observação: “Em Moreira Campos o que mais importa são os dramas da alma humana, e não a presença da terra, ostensivamente retratada nas páginas de Afonso Arinos e Gustavo Barroso”.
Batista de Lima, no ensaio mencionado linhas atrás, fala da corrosão física dos personagens, dos agentes dessa corrosão, dos defeitos congênitos, da decrepitude, da doença e da morte. A seguir analisa o oposto disso, ou seja, a ordem: “A nova ordem começa a ser instaurada no momento em que o narrador doma a morte, colocando-a no convívio familiar dos personagens.” E, passando da ordem narrada para a ordem vocabular, constata a constante evolução da arte do contista.
Em “As Características da Escritura de Moreira Campos” (O Fio e a Meada: Ensaios de Literatura Cearense, págs. 155/158), Batista é de opinião que o contista “transita com mestria entre momentos impressionistas, neo-realistas e neonaturalistas, sempre conservando uma estrutura linear para suas narrativas, com princípio, meio e fim bem delineados.” Especifica: “As principais características da narrativa de Moreira Campos são: uma tendência para o uso de elementos descritivos em paralelo aos narrativos; os vazios deixados para serem preenchidos pelo leitor; a eliminação de comentários e interpretações paralelas; a quase ausência de diálogos; a atuação do tempo como elemento corrosivo sobre os personagens; o uso das repetições como forma de superação das dificuldades de relacionamento entre as diferentes classes de pessoas; a ironia; a luta pela concisão.”
José Alcides Pinto, em “Um Mundo de Coisas Miúdas” (Política da Arte–II, págs. 51/52), observa: “Moreira Campos, obstinado em sua procura do novo, do mundo brilhante das coisas obscuras, melhor direi de “vidas marginais”, reapanha, com O Puxador de Terço, o início de sua carreira literária, que ele torna cíclica num processo, quase mágico de depuração estilística”. Em “Moreira Campos e a Nova Ficção Brasileira” (PA-I), ao comentar Os Doze Parafusos, afirma: (...) “abrem um novo caminho na ficção de Moreira Campos, já esboçada sob o ponto de vista erótico em outras obras, mas sem a liberdade de como os assuntos são agora tratados, vistos de frente, com um realismo mágico e epidérmico, que se inscreve, com muita propriedade, no fescenino, num clima de autonomia individual e sem o prejuízo de uma linguagem estética – função inequívoca a toda obra de arte”.
Francisco Carvalho, em “A Transparência Formal na Ficção de Moreira Campos” (EL, págs. 124/127), vê nas peças ficcionais de A Grande Mosca no Copo de Leite que “em todas elas a excelência do artesanato literário destaca-se por uma rigorosa economia de palavras e por uma extraordinária transparência formal”. E mais adiante: “A prosa enxuta, a frase carregada de sentido, a noção de ritmo e de musicalidade, o poder de síntese, o rigor no emprego da palavra, a densidade psicológica e a expressividade – são esses alguns dos aspectos que se articulam no contexto ficcional do novo livro de Moreira Campos”. Em “Contos Escolhidos” (Textos e Contextos), analisa a evolução do contista: “Os contos da primeira fase, elaborados sem qualquer preocupação de fidelidade aos paradigmas da chamada “história curta”, já se apresentam numa evidente perspectiva de modernidade”. E mais adiante: “Já nos contos da segunda fase, Moreira Campos persegue obstinadamente os horizontes da síntese, da pura essencialidade”.
Profanação
A cidade repousava na paz dormente da tarde. Redemoinhos. Carneiros que ruminavam à sombra da igreja. Outros animais pastavam na praça principal, que o mato ia farto naquele fim de águas. De repente, o relincho do jumento cortou o espaço, vibrante, sincopado, sacudindo concentrações. Jumento só relincha em hora certa. À larga sombra do oitão na casa da esquina, Seu Manduca, farmacêutico, concluiu o lance no tabuleiro do gamão e consultou o relógio: vinte para as cinco. Inesperado! Um erro qualquer de cálculo. Novo relincho, houve tropel de cascos. Já o jumento se desembainhara: lança em riste, reluzente, sugestão de um bacamarte boca-de-sino. O beiço superior dobrado, em cheiro de sexo ou de cio, um fauno. A jumenta, nova, um mimo de ancas, talvez ainda intocada, atirou-lhe logo uns dois pares de coices na queixada, de que ele se livrava com dignidade e firmeza. Insistiu em mordê-la no pescoço. Novos coices, toda uma beleza de mocidade. Qualquer coisa, pela própria violência e rápidas entregas e negaças, a lembrar a festa necessária do sexo. A arma poderosa erguia-se lenta contra o peito do próprio jumento, como que se acamando, em pancadas repetidas, mola, alavanca para grandes pesos. Perseguia a fêmea, tentou cavalgá-la, escorregou. D. Esmerina, da janela de casa, a vista curta, apertava as pálpebras, num esforço de verificação. Pressentiu coisas. Mandou que a neta entrasse, menina de doze anos. Sinha Terta parou no meio da praça, equilibrando na cabeça a trouxa de roupa, seduzida, esquecida de tudo. No bilhar de Duca, os homens abandonaram o jogo e, do alto da calçada, bateram palmas:
– Eita, cabra macho!
Mais coices. A jumenta apressava o passo em trote gracioso, e o fauno atrás. Ela entrou por uma das portas laterais da igreja, e ele também, o beiço superior mais dobrado que nunca. Quebraram bancos, o velho confessionário foi deslocado. Alexandre Sacristão, que espanava o altar e os santos, ficou com o espanador parado no ar. Padre Rolim tangia os brutos com a batina (porque esta estória é antiga):
– Xô, demônios!
Tudo se consumou na sacristia, perto da grande mesa coberta com a toalha de gorgorão, onde aos domingos se realizavam as conferências da Sociedade São Vicente de Paulo e se pagava o óbolo.
A beata Inacinha assistira à cena por trás da cortina, perplexa e hipnotizada. Seguira detalhes: a penetração profunda, que lhe dera estremecimentos, a contração da fêmea, os movimentos rápidos. A própria Inacinha sentira um dilaceramento íntimo, como se sangrasse, desejo também de entrega:
– Oh!
Todos siderados: Padre Rolim, Inacinha, Alexandre Sacristão, as outras beatas que chegavam. Padre Rolim se recompôs logo e, afinal, tangeu os dois. Já muitos curiosos no oitão da igreja, um deles vindo do bilhar e ainda esfregando o giz na ponteira do taco. Padre Rolim insistia:
– Absurdo!
Virou-se para Alexandre Sacristão.
– De quem é esse jumento?
Alexandre não sabia. A beata Inacinha conhecia o dono da jumenta:
– É Seu Dedé. Lá da beira do rio.
Padre Rolim, desabotoado, abanava-se com a gola da própria batina:
– O que está faltando é um homem na Prefeitura. Irresponsáveis! Um bando de animais soltos!
Mais curiosos que chegavam. Por fim, foram-se afastando. Alexandre Sacristão veio com o chumaço de estopa e o balde de água para a limpeza do piso da sacristia, onde restava a grande sobra de sêmen e de onde subia um cheiro de sexo, que dilatava as narinas, as de Inacinha ainda mais inflamadas.
Padre Rolim decretou que era profanação. Não que fosse preciso interditar a igreja, cerrar portas. Mas pelo menos benzer a sacristia. Apanhou o hissope, aspergiu água benta, disse orações, acompanhado pelas beatas e por Alexandre Sacristão, que terminou por repor no local a grande mesa com toalha de gorgorão, que também fora deslocada.
A notícia correu a cidade: Padre Rolim dissera que tinha havido profanação. Benzera a sacristia. Na porta de casa, Seu Apolinário, lido e surdo, levava a mão em concha à orelha cabeluda, com certa ironia.
– Tinha havido o quê?
– Profanação.
– Ah, sim.
A beata Inacinha sentia agora dificuldade de concentrar-se nas orações. A imagem em tanga de São Sebastião no oratório de casa, as chagas, as setas profundas, o sangue, tudo se confundia com a penetração enérgica, dilacerante, quente, morna. Um verdadeiro demônio, como dissera Padre Rolim, até pelo retesado das patas, quase em pé, os cascos, aquele espeto enorme.
Inacinha voltava às contas do terço.
Na manhã do outro dia, os soldados e os presos de confiança na calçada da cadeia, divertidos, tentavam identificar o jumento, que pastava perto, junto à cerca de arame farpado, de mistura com outros animais. Alguém o apontou. Lá estava ele: moço, inteiro, forte no sopro das narinas. Tosava o mato e erguia a cabeça, altivo, enquanto o rabo tangia varejeiras.
Seu Dedé, lá da beira do rio, já viera recolher a jumenta.
A cidade voltou à tranqüilidade de sempre: à tarde, os carneiros ruminavam à sombra da igreja.
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