sexta-feira, 7 de outubro de 2016

BRECHAS DE UMA JANELA


Autor: Carlos Delano Rebouças

Fica aquele garoto a querer olhar todo o movimento da rua. O ângulo nem sempre é o melhor, muito menos, a posição que ocupa em frente a sua janela. Conta somente com as brechas de seu estilo veneziano e nada mais. Pobrezinho! Não tem forças nem coragem de abri-la para deixar-se conhecer o mundo.

Essa é a rotina da vida de Sérvulo, um garoto que poderia ser igual a tantos outros de sua idade, mas diferente o é, vivendo no seu mundo com tantas interrogações, suas e de sua família, que busca entender o seu comportamento. Sua mãe, chorosa, responde sem mesmo ninguém perguntar; basta lhe direcionar o olhar:

- Ninguém aqui em casa o proíbe de sair, de brincar com as outras crianças da rua, de ir à escola, de conhecer o mundo!

Como é angustiante para um amigo daquela família que há anos acompanha um garoto de 12 anos, na flor da idade, cheio de energia, formatando seu mundo de forma retangular, sem o brilho e o calor do sol, sem o vento a beijar-lhe o corpo por inteiro, sem um suor a escorrer na testa, para a ardência de seus olhos. Como queria saber o que se passa na cabeça daquele monossilábico menino, que na sua introspecção, nem por dor e fome demonstra numa frase as suas vontades e necessidades.

Embora, jamais me permitiu aproximação, já não consigo me manter na minha posição de amigo da família, assistindo o tempo passar para aquele garoto. Preciso tomar uma atitude o mais rápido possível. Conto com o apoio de sua família – seu pai Francisco, seus irmãos Douglas e Letícia, e sua mãe Teresa – que, diante de todas as tentativas, inclusive, com intervenção de especialistas, nada mudou.

Foi numa tarde de sábado, quando na sua casa cheguei, que fiz a minha primeira tentativa de aproximação. Comecei com a tentativa de um diálogo, que com o seu silêncio de sempre, foi em vão. Senti-me o apresentador da Voz do Brasil. Fiz outras e outras e outras... e nada de reagir às minhas investidas. Parecia que não havia ninguém ao seu lado. E só estávamos nós naquela imensa casa naquela tarde. Todos os outros membros da família saíram para um passeio, deixando-nos sozinhos.

Em outra tentativa, tentei fazer uma graça com piadas, encenações, malabarismos, dentre outros recursos circenses os quais nem mesmo acreditava conhecer e dominar, mas, novamente, em vão, com a testemunha de seu silêncio mais uma vez.

A tarde já estava dando adeus e a noite se anunciava. Pais e irmãos já estavam prestes a chegar, e o meu medo de um fracasso já começava a mostrar sua face. Não queria que sua família confirma-se o pensamento inicial que de nada adiantaria. Não gostaria que o pessimismo com cara de realismo fosse ratificado.

Diante da possibilidade de desistir, tive uma ideia, muito mais movida pela minha curiosidade. Disse a mim mesmo e em voz baixa, embora ele, Sérvulo, jamais quisesse me ouvir:

- Se olha tanto para fora, através das brechas da janela, é porque lá deve ter alguma coisa de interessante e quer descobrir.

Com essa certeza, abri, sem que me visse, aquela larga porta que daria acesso ao jardim de uma das casas mais antigas do bairro, em estilo colonial, com um imenso jardim, e cujo muro, bem alto e fechado na sua totalidade, impossibilitava qualquer visão do que acontecia além dos seus limites. Entendi, então, que a fronteira entre Sérvulo e o mundo não se resumia somente a janela de sua casa, mas aos muros que o impossibilitavam de conhecer o que o mundo poderia lhe oferecer.

Foi aí que pedi que o muro fosse remodelado, ou melhor, reconstruído na forma de grades, abertas, sem nada que impedisse ser visto, tanto de dentro para fora, como de fora para dentro.

Feito isso, de imediato não notamos mudanças em Sérvulo, mas, certo dia, enquanto tomávamos um café da tarde, sentados à mesa, percebemos um tímido sorriso a se desenhar no rosto de Sérvulo. Não demorou muito para que se tornar uma larga gargalhada. Aquela situação inédita vivida por todos despertou a curiosidade de saber as razões, e, como se todos disputassem uma prova de 100 metros rasos, atravessamos aquela imensa porta e vimos que do outro lado do muro havia garotos brincando e interagindo com Sérvulo. Nascia o primeiro contato daquele até então tímido menino, com um mundo que desconhecia.

Chorosos, todos ficaram de emoção. Foi o primeiro passo para a socialização de Sérvulo, que, sem demora, mudou da água para o vinho, abandonando aquela janela e passando a interagir com todos – pais, amigos e o mundo - nem parecendo ser aquele garoto que escolheu viver o seu mundo.

Depois de Sérvulo renascer para o mundo, de ter voltado a se socializar e estudar, sua mãe Teresa, numa dessas visitas que costumava fazer, perguntou-me:


- Jair, em acha que erramos para que Sérvulo tivesse escolhido viver daquela forma? Será que foi aquele imenso muro que construímos para garantir a nossa privacidade?

Respondi:

- Não. Foi a percepção que nunca tiveram sobre os desejos e os sonhos de Sérvulo, que se viu limitado a fazer suas escolhas, embora pudessem ser vigiadas e orientadas, contudo, respeitadas, e com isso, escolheu a sua janela como o seu único caminho para continuar mantendo o seu sonho de conhecer o mundo.

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