Carlos Delano Rebouças
Decerto,
pode parecer que se trata apenas de mais uma cena comum cotidiana presenciar
recicladores no exercício de se árduo e insalubre ofício de coletar o lixo das
ruas da cidade para a sua sobrevivência, se não tivesse me causado tanta perplexidade
diante de todo o cenário de reflexão sobre aquela figura feminina sexagenária
na condução de sua carroça. Dura realidade para quem usufrui de saúde e da
vitalidade da tenra idade, e que ainda nutre a esperança de dias melhores,
imagina para quem já chegou a melhor delas, sem tanta saúde para dar e vender,
e sem mais expectativa alguma de dias melhores, senão condicionar cada segundo
a mais de vida em cada centavo conquistado por quilos e quilos de lixo.
Assim
enxerguei aquela velha senhora – marcada pelo tempo por rugas e fios de cabelos
descoloridos, com uma pela desidratada, flácida e maltratada por um sol
impiedoso que parece estar bem mais próximo de quem deseja uma sobra, e
cansada, mas relutante em busca de seus objetivos – de postura curvada e de
olhar cirúrgico e atento em busca de uma latinha, de mais uma garrafa, dessas
que descartamos tão facilmente, sem compromisso algum com o meio ambiente, nas
ruas de nossas cidades. Pobre mulher! Juro que bem mais que uma reflexão,
permitiu-me chorar sem derramar uma lágrima sequer, diante do cenário de
desilusão que construí, em confronto com o que espero de melhor para uma
sociedade.
Mas
há quem diga que é muito normal uma cena dessas, e ainda se relatam outras bem
mais dolorosas de se imaginar, duras para um coração sensível, revoltantes para
os olhos justos de um cidadão que entende que também há um abismo entre os
sensos de normalidade e naturalidade, sensatez e irresponsabilidade social.
Contudo, numa visão mais sensível, mas nem tão menos crítica da sociedade,
torna-se fácil identificar que em um país que muito se fala e pouco se faz,
esse não seria bem o tratamento que um idoso mereceria ter. Concordam?
Somos
mocinhos e bandidos nessa triste história de horror! Fazem de conta que nos
ensinam e nos educam, e fingimos que tudo está bem e nada está errado,
inclusive aceitando a realidade de que um idoso pode carregar uma carroça
superpesada numa lida diária de coletar lixo. Somos protagonistas e
antagonistas de uma peça cujos atores principais são os menos favorecidos,
escravizados por um sistema que aniquila impiedosamente, sem temor, aqueles
mais frágeis e mais vulneráveis.
Certa
vez, assisti um belo documentário sobre gestão de resíduos, intitulado “Lixo
Extraordinário”. Nele, um artista plástico de nome Vik Muniz levou a
oportunidade de transformar o lixo em arte para recicladores de um dos maiores
aterros sanitários do Brasil, permitindo-lhes se tornarem protagonistas maiores,
terem reconhecimento internacional, sentirem-se reconhecido como ser humano, identificarem
seus valores ocultados pelo mal cheiro que distancia e rotula, e pelos dejetos
descartados em rampas, pano de fundo de suas vidas sofridas, que servia para
muitos como um refúgio, uma oportunidade de esconder suas desilusões.
O
documentário sem dúvida é extraordinário, pois faz do lixo – algo desprezível
já pelo nome – um bem valioso e edificante na vida de tanta gente, mas que não
deixa de ser entristecedor assistir tantas pessoas, das mais variadas idades e
sexos, disputando peça por peça num espaço dividido com cães e abutres na instintiva
batalha pela sobrevivência.
Espero
que um dia tudo isso mude; que deixemos de ver pessoas sendo exploradas em
busca do lixo. Sabemos que ele sempre será produzido, mas que não se produza
cenas degradantes aos olhos mais sensíveis e sensatos, que sentem tristeza em
ver tanta desigualdade social em um país de tantas riquezas, no qual se insiste
em estabelecer esse paradoxo existencial entre os filhos de sua terra.
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