quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Uma cena para se jogar no lixo



Carlos Delano Rebouças

Decerto, pode parecer que se trata apenas de mais uma cena comum cotidiana presenciar recicladores no exercício de se árduo e insalubre ofício de coletar o lixo das ruas da cidade para a sua sobrevivência, se não tivesse me causado tanta perplexidade diante de todo o cenário de reflexão sobre aquela figura feminina sexagenária na condução de sua carroça. Dura realidade para quem usufrui de saúde e da vitalidade da tenra idade, e que ainda nutre a esperança de dias melhores, imagina para quem já chegou a melhor delas, sem tanta saúde para dar e vender, e sem mais expectativa alguma de dias melhores, senão condicionar cada segundo a mais de vida em cada centavo conquistado por quilos e quilos de lixo.

Assim enxerguei aquela velha senhora – marcada pelo tempo por rugas e fios de cabelos descoloridos, com uma pela desidratada, flácida e maltratada por um sol impiedoso que parece estar bem mais próximo de quem deseja uma sobra, e cansada, mas relutante em busca de seus objetivos – de postura curvada e de olhar cirúrgico e atento em busca de uma latinha, de mais uma garrafa, dessas que descartamos tão facilmente, sem compromisso algum com o meio ambiente, nas ruas de nossas cidades. Pobre mulher! Juro que bem mais que uma reflexão, permitiu-me chorar sem derramar uma lágrima sequer, diante do cenário de desilusão que construí, em confronto com o que espero de melhor para uma sociedade.
Mas há quem diga que é muito normal uma cena dessas, e ainda se relatam outras bem mais dolorosas de se imaginar, duras para um coração sensível, revoltantes para os olhos justos de um cidadão que entende que também há um abismo entre os sensos de normalidade e naturalidade, sensatez e irresponsabilidade social. Contudo, numa visão mais sensível, mas nem tão menos crítica da sociedade, torna-se fácil identificar que em um país que muito se fala e pouco se faz, esse não seria bem o tratamento que um idoso mereceria ter. Concordam?
Somos mocinhos e bandidos nessa triste história de horror! Fazem de conta que nos ensinam e nos educam, e fingimos que tudo está bem e nada está errado, inclusive aceitando a realidade de que um idoso pode carregar uma carroça superpesada numa lida diária de coletar lixo. Somos protagonistas e antagonistas de uma peça cujos atores principais são os menos favorecidos, escravizados por um sistema que aniquila impiedosamente, sem temor, aqueles mais frágeis e mais vulneráveis.
Certa vez, assisti um belo documentário sobre gestão de resíduos, intitulado “Lixo Extraordinário”. Nele, um artista plástico de nome Vik Muniz levou a oportunidade de transformar o lixo em arte para recicladores de um dos maiores aterros sanitários do Brasil, permitindo-lhes se tornarem protagonistas maiores, terem reconhecimento internacional, sentirem-se reconhecido como ser humano, identificarem seus valores ocultados pelo mal cheiro que distancia e rotula, e pelos dejetos descartados em rampas, pano de fundo de suas vidas sofridas, que servia para muitos como um refúgio, uma oportunidade de esconder suas desilusões.
O documentário sem dúvida é extraordinário, pois faz do lixo – algo desprezível já pelo nome – um bem valioso e edificante na vida de tanta gente, mas que não deixa de ser entristecedor assistir tantas pessoas, das mais variadas idades e sexos, disputando peça por peça num espaço dividido com cães e abutres na instintiva batalha pela sobrevivência.
Espero que um dia tudo isso mude; que deixemos de ver pessoas sendo exploradas em busca do lixo. Sabemos que ele sempre será produzido, mas que não se produza cenas degradantes aos olhos mais sensíveis e sensatos, que sentem tristeza em ver tanta desigualdade social em um país de tantas riquezas, no qual se insiste em estabelecer esse paradoxo existencial entre os filhos de sua terra.





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