domingo, 24 de julho de 2016

APENAS O CHEIRO DO CAFÉ


Autor Carlos Delano Rebouças

Se existe uma coisa que Dona Inácia adora mais que tudo, porém abaixo de Deus e nosso Senhor Jesus Cristo, é café. Desde a infância, desenvolveu-se um prazer pela bebida de forma incontrolável, muito, em decorrência de tantas dificuldades vividas, em que a bebida veio a substituir o leite que secara no peito de sua mãe.

Certa vez, nas suas caminhadas diárias pelo bairro onde mora, na distante e pacata Vila dos Prazeres, avistou um carro grande e imponente, daqueles que não costumava ver no lugarejo fora de períodos eleitorais. Como tinha como costume caminhar pela rua, evitando as calçadas estreitas, já que temia tropeçar ou escorregar nas suas irregularidades, avistando aquele veículo se aproximando em alta velocidade e para escapar de um atropelamento, saltou para a calçada de uma das casas da rua. O carro passou e alta velocidade levantando poeira de um mês de muita ventania e escasso de chuva para baixá-la.

Depois de um longo suspiro de alívio, disse: “Chegar aos 87 anos escapando de tantas doenças, fome e miséria, e sobrevivendo com essa mísera aposentadoria, e morrer atropelada por um carro forasteiro, seria o fim da picada para esta velha que acredita que ainda terá muitos anos pela frente. Depois dessa, só caminharei pela calçada, pois somente assim me verei menos segura”.

Sem dar muitos passos adiante depois daquele susto, sentiu inesperadamente adentrar em seu nariz o suave cheiro daquela bebida que tanto apreciava. Parecia lhe fazer flutuar, entorpecendo-o de prazer, levando-a a se esquecer, totalmente, daquele imenso susto passado há poucos instantes. Nada mais lhe interessava, senão saber de onde vinha aquele aroma convidativo de café.

Com um olhar investigativo, percebeu que vinha da casa em cuja calçada encontrava-se estacionada. Procurava uma porta ou janela aberta, ou uma brecha sequer nas suas venezianas, que lhe permitissem ser ouvida. Não podia gritar, mas chamava pelos seus moradores de forma discreta, já que cinco da manhã tratava-se de um horário no qual a cidade inteira ainda dormia. Mas naquela casa não, alguém parecia exceção e já despertado, preparava seu tradicional café da manhã.

Discretamente bateu à porta; Insistia em chamar ao mesmo tempo em que apreciava o aroma dos deuses, com assim definia para os mais próximos. Impaciente, falava a si mesma que precisa pelo menos de um gole daquilo que lhe parecia uma droga. Acreditava que ia ser ouvida, e em seguida, convidada a entrar, ou pelos menos, ser-lhe oferecida uma xícara sequer, para depois seguir seu caminho.

Nada disso aconteceu. Seu apelo não foi atendido. Sem demora, aquele cheiro delicioso de café perdeu-se com o vento, e com sua voz já cansada de chamar por quem não lhe parecia querer atender, desistiu diante de uma profunda desilusão. Teve de se contentar, somente, com o cheiro do café que lhe invadiu as narinas, rumo à sua consciência. Mas, como o brasileiro costuma enxergar o lado bom das situações desagradáveis passadas, acreditava que dos males o menor e que fique pelo menos marcado na sua memória o alívio de ter escapado daquele quase inevitável atropelamento.

Dona Inácia seguiu seu caminho, agora, não mais pelas ruas, mas sim, pelas suas estreitas e irregulares calçadas, na certeza de que está um pouco mais segura e na esperança de que um dia alguém lhe permita bem mais que somente o cheiro de um café.



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