quinta-feira, 26 de julho de 2012

UM POUCO DE LITERATURA

Uma das maiores especialistas em literatura portuguesa no Brasil compila peças do Pai do Teatro lusitano



Detalhe da capa do livro "Gil Vicente: Autos", que traz 19 peças do primeiro entre os grandes dramaturgos portugueses. Os textos foram selecionados e organizados pela professor Cleonice Berardinelli, numa primorosa edição
Gil Vicente escreveu mais de 40 peças teatrais - destas, 19 compõem este livro, compreendendo Obras de Devação; Tragicomédias; Farsas; e Comédias. Além da apresentação, onde percorre dos dois séculos das expansões ultramarinas de Portugal, há uma série de ensaios acerca do dramaturgo português e um precioso glossário. De grande valia são também as notas de rodapé.

Do gênero
O auto enquadra-se como uma espécie do gênero dramático, muito recorrente na Idade Média, cuja singularidade residia em trazer em si um fundamento religioso e moralizante. Alicerçado em linguagem popular, constituído por apenas um ato, visa, em geral, estabelecer alegorias acerca da redenção do ser humano. As peças de Gil Vicente ganharam o gosto popular bem como o da fidalguia portuguesa do século XVI, em especial por conta de sua simplicidade dramática e pelas ironias e sarcasmos lancinantes por que construía a sua crítica à sociedade, despindo-lhe os usos e costumes, a moral e os desmandos do poder. Nesse sentido, nada escapava a seu olhar, uma vez que, como poucos, soube ler as consequências das transformações que o próspero período expansionista fez recair sobre a organização social de seu tempo.

Uma farsa

Uma de suas mais populares peças se intitula A Farsa de Inês Pereira, sendo, ao mesmo tempo, um emblemático exemplo da capacidade crítica de seu autor, espelhando, com nitidez, a natureza moralizadora de seu teatro. Essa peça foi apresentada, pela primeira vez, à corte de D. João III, em 1523. Trata de um tema bastante delicado, se considerarmos os valores da época: as relações familiares. Nos espaços circunscritos do lar, deparamos o esmagamento da condição da mulher - esta estava, rigorosamente, sob a égide do poder paterno ou sob os direitos sagrados de um marido. São, portanto, bastante nítidas a crítica social e a intenção de transformação de valores e de costumes. A trama vai sendo costurada por diálogos e ações que vão se acumulando, pois, como um traço renovador, o dramaturgo dissolve a unidade de ação, de tempo e de espaço. Tudo transcorre sem que os quadros interajam entre si, num ritmo veloz, em que se destacam os movimentos caricatos.

O enredo

Para desenvolver o tema do casamento como processo de libertação de uma moça das tiranias maternas, Gil Vicente entra numa família em que se estabelece um contraste nas relações mãe e filha: se esta, mesmo a contragosto, submete-se aos cansativos afazeres domésticos impostos por aquela, recusa-se a aceitar como marido um rico lavrador que a mãe escolhera como genro. A mãe insiste em alertar a filha das dificuldades que esta haveria em encontrar um casamento, uma vez que sonhava com o ócio e com as diversões das outras moças. Deseja, a rigor, a corte de um escudeiro, boêmio e folgazão. Ela idealiza o futuro amante - a quem vê como nobre e educado. Mas tudo se dissolve quando finalmente vem à tona a verdadeira condição e personalidade do Escudeiro. Com a morte deste, a moça aceita então a proposta de casamento do rico lavrador.

Considerações finais
Uma nota à parte finca-se no final desse livro - Gil Vicente: Autor -, ocasião em que o leitor entra em contato com os ensaios de Cleonice Berardinelli. Ao longo de umas 100 páginas, é possível mergulhar, com segurança, no universo do dramaturgo lusitano, através da agudeza de leitura e de interpretação da professora emérita da UFRJ. A edição dessa obra é uma oportunidade a mais para os leitores de nossa contemporaneidade mergulharem na atmosfera do passado e, com isso, entrar em contato com o que é perene à condição humana em meio ao drama da existência.

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