terça-feira, 24 de julho de 2012

HOJE NA COLUNA DE BATISTA DE LIMA / DN

A morte e o coveiro
Já fazia seis meses que não morria ninguém em Sipaúbas. O coveiro já passava necessidade. O caixão das almas estava sendo comido pelo cupim em uma sala da casa paroquial. O posto de saúde não recebia ninguém, porque ninguém adoecia. Nem dor de dente maltratava aquele povoado de quase cinco mil habitantes. Esse surto de saúde era tão sério que a população começou a se preocupar com o que de ruim pudesse vir depois de tanta felicidade. Foi aí que a morte apiedou-se daquele povo e resolveu ir buscar alguém para seu reino.

Primeiro foi à casa do coveiro, com quem mantinha estreita amizade, e se inteirou da situação dos idosos da localidade. Segundo foi informada, havia três sipaubenses com mais de noventa e cinco anos. O mais velho era Terêncio Espinheira, 98 anos, velho pistoleiro com quarenta mortes nos costados, magarefe e açougueiro nas horas vagas. O velho, toda noite, ficava na calçada de casa pegando a brisa, com o velho rifle papo amarelo entre as pernas, uma doze polegadas na cintura e a quarenta e cinco enfiada no cós da calça.

A morte chegou humildemente, deu boa noite e tentou convencer o velho a acompanhá-la dali para uma melhor, como forma de se livrar das dores das doenças venéreas e do estrago das balas em tempos de pistolagem. A indesejada das gentes recebeu como resposta uma saraivada de balas de duas armas de fogo e mais umas peixeiradas nas partes mortais. Não morreu porque a morte não é fácil de morrer. Mas para escapar teve que se embrenhar num juremal fronteiriço indo se refugiar por alguns dias em quarto escuro da casa do coveiro.

Recuperada da surra, após muitas meizinhas, a morte resolveu procurar um idoso menos violento para levar no retorno ao seu reino. Foi então orientada pelo coveiro a procurar Dona Generosa, que com seus 97 anos já estava satisfeita com o tanto de vida que tinha vivido. Mal chegou à casa da santa mulher, filha de Maria, e secretária da capela, foi recebida com pão-de-ló e aluá de pão dormido. Foram tantos agrados que a morte entrou logo no assunto de sua visita. Tinha que levá-la para o outro lado, pois não queria voltar de mãos abanando. Dona Generosa lhe deu toda razão e lhe prometeu seis meses mais de pão-de-ló, aluá e leite da vaca preta, afinal precisava desse tempo, pois estava precisando ensinar a sua neta Angélica como secretariar a igreja, prover a sacristia e fazer mesuras ao padre. Com sua neta já ensinada, a morte poderia levá-la, mas os seis meses eram indispensáveis. A morte achou a proposta razoável e voltou à casa do coveiro em busca de novas orientações.

Foi então que veio à baila nova proposta do homem do cemitério. É que no fim da rua morava Raimundo Fumeiro com seus 96 anos de tosse braba de tanto fumar e mascar, além de sustentar o vício de milhares de fumantes da região com o fumo que produzia no seu quintal. O coveiro convenceu a morte de que o homem do fumo travava uma concorrência desleal com os dois, afinal, com seu fumo forte, esburacava pulmões de léguas nas redondezas. Ligeirinha a morte se abancou na casa de seu Raimundo, sendo recebida com café torrado na rapadura, rolo de fumo de safra de bom inverno, papelim e trinchete de picar. Isso tudo acompanhado de um sorriso amarelo de nicotina e a tosse convidativa para a festa dos sete palmos.

Depois de tantos salamaleques, a morte contou das suas intenções. Chegou a concluir que levando-o consigo era uma forma de acabar com aquela tosse e com os suores noturnos. Seu Raimundo achou a proposta e o convite razoáveis, mas que gostaria de fazer um desafio à morte, antes da partida. É que seu fumo era tão bom que ia fazer falta na região. Ele queria fazer um concurso e se alguém produzisse fumo melhor que o dele, a morte poderia levá-lo. A coitada da indigitada saiu de casa em casa, depois pelos sítios e capoeiras à procura de litigante para enfrentamento do sabido produtor de fumo. Ninguém se atreveu a entrar na contenda. Foi então que a morte lançou a última cartada. Ela própria iria enfrentar aquele fumeiro metido a sabido.

A disputa foi regulamentada com os dois utilizando folhas de fumo do plantio do desafiante e com um prazo de quinze dias para apresentar resultados. Com quinze dias, os dois se reuniram com seus produtos e como a morte viu que seu rolo estava ainda desfigurado de cores e desprovido de cheiro, pediu mais cinco de lambuja para a conclusão do certame. Seu Raimundo permitiu e com o tempo findado e os jurados provadores votando, o fumeiro derrotou a morte e ganhou mais tempo de vida. Essa derrota tanto abalou a perdedora que a mesma reconhecendo as qualidades do ganhador, pediu a ele que lhe explicasse como conseguira produto de tão alta qualidade.

Seu Raimundo olhou para os lados, viu que não havia nenhum dos seus fregueses por perto, e confessou à morte que ela e seus concorrentes, todas as manhãs, banhavam os seus rolos de fumo com água de sal, como mandam os livros. Ele, Raimundo Vitorino da Silva, há décadas produzia o melhor fumo da região sem usar esse tipo de água, mas simplesmente urinando no rolo de fumo todas as manhãs, ao longo de oito décadas de produtor. A morte sentindo-se mais uma vez vencida voltou ao coveiro e com ele foi beber Fubuia em boteco tosco por uma noite inteira. Ao amanhecer viajou de volta para seus territórios, levando nas costas o coveiro de Sipaúbas, vítima de coma alcoólico. 

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